Na Cara do Gol MT

A maior promessa do badminton do Brasil está na favela da Chacrinha

Bad o quê?"
"Badminton, aquele lance da peteca", respondi.
A Chacrinha é uma comunidade de 5 mil habitantes no extremo da Zona Oeste do Rio de Janeiro, entre o bairro do Tanque e da Praça Seca. É também o improvável local da sede da Associação Miratus, um centro de prática de badminton, o esporte de raquete mais rápido do mundo e, como ia percebendo, não muito popular por aquelas terras.
Não foi difícil seguir o mapa do site da agremiação, mas um só vacilo foi suficiente para me perder e lembrar que, assim como a maioria das outras comunidades carentes da cidade, a Chacrinha também é esquecida não só pelas autoridades mas também pelos serviços de telefonia celular e GPS. Resignado, tive de recorrer ao modo antigo: as mensagens vocais.
"Sabe onde fica o Miratus?"
"Miratus?", um sujeito respondeu com outra pergunta.
"É, Miratus, um clube de badminton, é, aquele lance com a peteca."
"Bad o quê?"
Foram muitas perguntas do gênero até que uma menina me indicou o caminho correto. Ao chegar lá, deparei-me com um enorme portão que dava para uma vila com o imponente ginásio de 1500m² pintado de azul e branco. Lá avisto Ygor Coelho, de 19 anos, o primeiro atleta brasileiro a se classificar para o badminton numas Olimpíadas – a que será disputada em sua casa, no Rio de Janeiro, a partir de agosto.
"Tá fugindo de mim, é, Ygor?", brincou um moleque ao lado dele enquanto fazia quicar uma peteca numa raquete.
Tímido, Ygor deu uma risada e me explicou que, por causa de sua intensa rotina de treinos, não tem tempo de jogar com os colegas. Ao caminhar ao lado dele, noto que a maioria dos outros alunos lhe cumprimenta, acena, brinca.
"Então tu é o fodão da parada aqui?"pergunto, deixando o rapaz ainda mais encabulado.
"É, mais ou menos isso!"

Ygor Salles, 19, é um dos 40 melhores jogadores de badminton do mundo. Crédito: Fabio Teixeira/ VICE

Antes que o leitor pense que a classificação de Ygor se deu por conta das vagas destinadas ao país-sede em todos os esportes, cabe lembrar que o garoto se classificou por causa de sua classificação no ranking mundial. Hoje um dos 38 melhores do planeta, ele se qualificaria para as Olimpíadas fosse onde ela fosse.
Praticante do "esporte da raquete e da peteca" desde os três anos, Ygor começou a disputar torneios aos seis. Demonstrou que tinha talento desde cedo. Em 2005, ao completar 9 anos, ganhou três medalhas de ouro e se classificou para Pan-Americano Júnior. Lá fez bonito: conquistou ouro no sub-11 e, nos anos seguintes, repetiu o feito. Foi campeão do sub-13, do sub-15, do sub-17 e do sub-19.
"Sou hexacampeão do Pan-Americano Junior e também fui pros Jogos Olímpicos da Juventude em Nanjing, na China", conta. "Foi uma conquista muito importante que me preparou para eu estar nos Jogos Olímpicos de 2016."
O fato de Ygor ser o primeiro atleta brasileiro de badminton a se classificar para as Olimpíadas é ainda mais espetacular se lembrarmos que o esporte pouco popular no Brasil costuma ser praticado em clubes tradicionais e elitistas mundo afora. O responsável por montar um centro de treinamento para modalidade numa favela do Rio de Janeiro ele conhece bem: é Sebastião Dias de Oliveira, o seu pai.

"Queria me classificar pra os jogos Pan-americanos e acabei me classificando nas Olimpíadas!", diz Ygor. Crédito: Fabio Teixeira/ VICE

Sebastião fundou a Miratus com a motivação de dar oportunidade melhor para outros jovens. De início, seria um projeto voltado à natação. Em 1998, porém, dois anos após o nascimento de seu filho Ygor, ele conheceu o badminton por meio de um professor do Colégio Pedro II. Segundo ele, a combinação de energia e liberdade fizeram com que a modalidade o conquistasse. Era perfeito para servir como plataforma educativa. "No badminton, você tem de destruir o adversário, ele tem de se virar para correr atrás da peteca", diz. "Vi então que era o esporte que reúne tudo que o aluno precisa. Ele quer vir pra se divertir, e não para ser enquadrado com rédeas."
O pai de Ygor desenvolveu então a 'metodologia Bamon', em que combina brincadeiras com movimentos de samba para soltar o atleta. É como se levasse o ritmo aos pés dos praticantes. "Levo um sambista pro estúdio e transformo o movimento dele em som, ritmo e harmonizo, aí trago esse movimento e distribuo em faixas progressivas em que ele vai sambando, acelerando e se soltando na base para melhorar o jogo de pé", explica.
De forma lúdica, o jovem carente que frequenta a Miratus vai se divertindo com o esporte e, nesse processo, a equipe de Sebastião detecta os talentos. "Nem todos eles vão ser atletas de badminton, mas nós temos outras áreas e atividades, então pra alguma coisa ele vai servir", diz. "E se ele não servir pra nada do que tem aqui, só o tempo de convivência aqui, de tá lidando com regras o tempo todo, ele vai ser incluído socialmente. Aqui ensinamos que, dentro da escola ou do badminton, tem de se fazer o melhor até se tornar o campeão e, depois disso, manter o foco para permanecer o campeão."
"Para ajudar eu catava papelão, plástico, alumínio, tudo que estivesse ao alcance para poder sobreviver. Alimento também: lá cheguei a disputar comida com urubu."
Ele prossegue com discurso de quem conhece bem onde vive: "Temos de conquistar o território e também defender esse território", afirmou. "Veja por exemplo a UPP, que chegou numa área muito perigosa do Rio que é a Maré e agora, por falta de dinheiro, está recuando. Gastaram um dinheirão com o exército e a marinha para tomar conta e agora saíram. E aí?", indaga.
"Não conseguiram manter o território, e aí veio o tráfico e tomou de volta. E a população que mora lá? Quem está estendendo a mão para ela lá dentro?"

Do lixão às raquetes

A história de Sebastião, 50 anos, é daquelas que parece filme. Sua mãe era empregada doméstica e trabalhava para uma pessoa muito influente, um ministro de estado. O figurão queria se livrar do jovem Sebastião e usou sua influência para interná-lo na Fundação Nacional do Bem Estar do Menor, a famigerada FUNABEM, local destinado a menores infratores e sem-teto, o que não era seu caso. Ali Tião viveu dos 7 aos 18 anos. Só conseguiu sair para visitar sua mãe pela primeira vez aos 12 anos, quando ela já havia deixado o trabalho de doméstica e conseguiu alugar uma casa, a mais pobrinha da rua, em Caxias, na Baixada Fluminense.
O que prometia ser férias com a mãe se revelou um novo choque de realidade. Sebastião teve de ralar no lixão do Jardim Gramacho. "Para ajudar ela eu catava papelão, plástico, alumínio, tudo que estivesse ao alcance para poder sobreviver", diz. "Alimento também: lá eu cheguei a disputar comida com urubu."
O pai de Ygor relembra que uma de suas maiores felicidades era quando chegava o caminhão da extinta empresa de aviação VARIG. "Chegava garfo, colher e restos de comida, tudo da Varig", diz, com sua fala sempre doce, sem demonstrar vergonha alguma. "O pessoal caía dentro, era disputado porque tinha muita coisa gostosa lá. Lata de sardinha, ela vinha até estufada, mas a gente acabava comendo."

Meninos e meninas nas disciplinadas aulas de badminton de Sebastião, o pai de Ygor. Crédito: Fabio Teixeira/ VICE

Dentro da FUNABEM, Sebastião conheceu a paixão pelo esporte – a natação. "Meu tempo estava entre os 16 melhores do Rio de Janeiro no nado de peito, treinando na piscina de 25m dentro da instituição por esforço meu, mas eu não tinha espaço para competir", diz. "Minha primeira competição foi aos 16 anos direto contra federado e fiquei em terceiro lugar contra atletas que já disputavam campeonato brasileiro."
Nesse ponto, Sebastião questiona: quanto de experiência ele poderia ter ganho se tivesse mais oportunidades de competir? Quantos talentos com possibilidade de brilhar no esporte não haveria dentro da FUNABEM? Ele mesmo responde. "Quem capacitou esses atletas? Ninguém. Vários morreram ou foram parar em subempregos", diz.
Sebastião acredita que existe nos projetos sociais do país uma mentalidade muito prejudicial: a de que não se deve levar o alto rendimento e a competição para dentro deles. Pergunto qual seria a justificativa. "Eles dizem que exclui, mas exclui só para os incompetentes, exclui para quem não sabe trabalhar com esse tipo de coisas", diz. "Lá na FUNABEM eles davam tudo e não cobravam nada, você recebia um bandejão, os alunos lá eram que nem um touro, aí quando saiam de lá, voltavam para casa disputar comida com os irmãozinhos, começava a dar prejuízo e era colocado de escanteio pela família", conta. "Daqui a pouco ele tava lá em cima do morro dando tiro na polícia ou virando mendigo."

Na escolinha, Sebastião usa o samba para ensiná-los a soltar os pés. Crédito: Fabio Teixeira/ VICE

A ideia de montar a Miratus veio da necessidade de, como ele mesmo diz, "tirar as pessoas de só ficar na pipa". "Percebi que as pessoas que ficavam só na pipa eram os mais fracassados, e eu era um deles, ninguém gostou mais de pipa do que eu", conta. "Mas na hora que eu decidi mudar, tornei minha vida muito difícil ali na FUNAVEM, passei a ser muito radical comigo mesmo: trabalhar, trabalhar para aproveitar o tempo perdido. Se morrer hoje, morro feliz porque fiz de tudo, escrevi livros, gravei disco, desenvolvi uma metodologia de ensino para o badminton à base de música, então estou muito feliz com o que fiz na vida."
Para realizar o sonho de erguer a Miratus, Sebastião afirma que "enterrou todas suas economias". O mais importante, diz, foi dar a oportunidade para as crianças antes do tráfico – cujo caminho sempre leva à cadeia ou à morte. "As pessoas só se dão conta que as crianças carentes existem quando o trafico pega elas, quando elas tão puxando cordão no meio da rua, aí é que eles dizem 'alá o neguinho da favela', mas não, olha só, temos aqui um negão da favela que está se tornando um exemplo do esporte."
O negão em questão é Ygor. Hoje sorridente e admirado por todos que o conhecem, o jovem também teve que superar dificuldades. Embora não tenha passado fome como o pai, esteve muito tempo longe do conforto. Antes da Miratus ser tão imponente, Sebastião colocava todo dinheiro no projeto e, com efeito, Ygor dormia em cima de uma porta até os 15 anos. Chegar aos jogos também não foi fácil. Sem apoio do Comitê Olímpico Brasileiro (COB), o pai de Ygor teve de pegar empréstimos no banco e recorrer ao programa de TV do Luciano Huck para poder levar o filho para disputar torneios internacionais, conquistar títulos e acumular pontos no ranking.


Ygor conta que usou o esporte não só para mudar sua vida: também quer ajudar seu pai. "Eu queria realizar o sonho do meu pai: classificar em 2007 uma atleta pros jogos Pan-americanos. Ele não conseguiu porque tinham outras melhores. E aí eu acabei pegando esse sonho dele: queria me classificar pra os jogos Pan-americanos também, só que acabei me classificando nas Olimpíadas!", conta.
Hoje Ygor e o projeto Miratus têm apoio de várias empresas privadas e da Lei Estadual de Apoio ao Esporte. Após breve descanso, ele entrará numa rotina de treinos por Campinas, Portugal (onde emendará duas competições), Canadá e Estados Unidos. Depois voltará ao Brasil para alguns jogos preparatórios com a equipe da Indonésia – ao lado da China, uma das mais tradicionais do esporte –, retornando ao Rio em 3 de agosto, onde conduzirá a tocha olímpica pelo bairro de Caxias ao lado deu pai.
Para o menino que era zoado de "petequinha" na escola e hoje é ídolo de toda uma molecada, parece um sonho realizado. Mas o seu Sebastião o lembra que é apenas o começo."Fizemos um trabalho conjunto: eu ajudei você e você me ajudou, você acreditou em mim e eu acreditei em você, existe um talento de um lado e um talento do outro, uma determinação de um lado e uma determinação do outro, a soma disso é o que gera todos os resultados", diz o pai ao filho.

Ygor e seu pai e mentor Sebastião. "Daqui a pouco passa a Olimpíada e ele [o repórter] vai embora e acabou, neguinho, as pessoas vão esquecer o esporte e buscar outro tipo de reportagens."Crédito: Fabio Teixeira/ VICE

"A vaga era garantida, mas só um conseguiu. Agora você está aqui dando entrevista, a imprensa internacional está vindo aqui, mas daqui a pouco passa a Olimpíada e ele [o repórter] vai embora e acabou, neguinho, as pessoas vão esquecer o esporte e buscar outro tipo de reportagens. Aí, quando chegarem as outras Olimpíadas, eles vão voltar pra você: 'e aí? Por que você não está na Olimpíada do Japão' ou 'por que você está? Qual sua expectativa nesta segunda Olimpíada?', então você tem de trabalhar hoje para sua história ser colorida e não preto e branca."
Perguntei pro Ygor se foi difícil crescer com um pai tão durão. Numa risada encabulada, ele me confessou que ele não o deixava jogar bola, nem empinar pipa, para não se machucar e ficar longe de confusões. Ainda assim, diz que valeu a pena. Ygor também me mostrou várias vezes no seu álbum de fotos o dia em que a canadense Charmaine Reid, medalha de prata nos jogos pan-americanos do Rio, visitou o projeto, à época bem mais precário. "Foi a primeira atleta olímpica que eu vi jogar, ela me inspirou muito", diz.
O pai lembra então da importância de Ygor. Ele pode, assim como Charmaine, ser esse exemplo para outros, uma inspiração no Brasil. "Meu sonho é que você possa nunca esquecer dos seus irmãos", diz ao filho. "Seus irmãos não são só daqui da Chacrinha. Você é de uma comunidade, teu irmãos são da Maré, são de todas as periferias do Brasil, você tem que ser a voz da comunidade, você tem de sair dessa esfera e poder dizer assim: eu nasci, cresci, morei dentro da comunidade e optei por seguir este caminho, é possível!", afirma Sebastião.

"Você tem que ser a voz da comunidade." Crédito: Fabio Teixeira/ VICE

Encarando o filho, ele diz: "Por que estou expondo toda minha vida de ser catador de lixo, de comer coisa do lixo, pra quê? Eu vou aparecer com isso? Estou tentando mostrar para as pessoas da comunidade, as pessoas que precisam, que lutam com dificuldade, que é sua determinação que vai tirar você de lá". Ygor apenas sorri, com ar sonhador. "Você tem que ser a voz dessa comunidade", repete o pai.
Fonte: VICE
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